[Traducido del
original español por Sara Estima Martins. Muchas gracias Sara!!!!!!]
-Em que posso ajudá-lo?
A pergunta vem como o som do ondular de um
mar de calmaria. Quem me faz a pergunta é este homem de olhar sereno e
sorriso luminoso. Mas a verdade é que este homem simples vestido com
calças de ganga e camisa de manga curta é um dos melhores escritores
vivos de língua portuguesa. Com esta pergunta directa e o tratamento de
igual para igual, consegue que se me escape um sorriso que não me
abandona ao longo de toda a nossa conversa.
Começamos por falar
de realismo mágico, ainda que “as pessoas que inventaram esse nome não
fossem as que escreviam”, e explica-me que a principal diferença entre
os escritores africanos e os sul-americanos decorre da maior influência
que a igreja católica tem na América Latina, porque aqui “os mortos
nunca se vão embora”. Ainda que as pessoas frequentem diversas igrejas, a
grande maioria continua a crer nos antepassados e a conservar uma parte
da sua cultura tradicional.
O problema está no rígido sistema
racionalista europeu (não sei exactamente como ele o disse), ainda que
"lá as pessoas também acreditem no horóscopo, mesmo pela internet ".
Cedo me esqueço um pouco de que era suposto isto ser uma entrevista e
saímos e regressamos ao nosso tema como nos caminhos de areia dos
arredores de Maputo.
Digo-lhe de seguida que me impressionou
saber que um livro tão maduro, tão cheio de imagens subtis, repousadas,
profundas, tão cheio de Moçambique e de todas as suas histórias, tivesse
sido escrito antes de terminada a terrível "guerra civil" que devastou o
seu país. Ignorando os elogios como se eu não os tivesse dito,
confessa-me que “a mim também me surpreendeu. Eu não queria escrever um
livro sobre a guerra ou, quando muito, só bastante mais tarde. Mas
aconteceu assim. Sofri muito a escrever este livro, porque à noite
lembrava-me de histórias, visitavam-me os amigos mortos na guerra. E eu
tinha de encontrar UM LUGAR DE PAZ dentro de mim. Por isso tinha de
escrever este livro.” Fico tão fascinado com as suas reflexões que
quase me custa continuar, mas pouco a pouco os personagens vêm em meu
auxílio, como Virgínia, a mulher de origem portuguesa que reinventava a
sua família portuguesa desconhecida “como faziam os meus pais, que
contavam histórias de um Portugal ao qual não podiam voltar durante a
ditadura. Com as suas histórias iam-me criando uma família imaginária e
isso parecia-me muito importante". Não me dá pistas sobre quais, de
entre as histórias, são crenças tradicionais e quais são inventadas, mas
sorri maliciosamente contornando a minha pregunta e diz-me que “na
cidade onde eu vivia a colonização foi muito difícil e não controlaram
bem a cidade. Por isso, se atravessasse a rua podia brincar com meninos
indianos e negros. Aprendi a língua deles e eles contavam-me as suas
histórias. Ao voltar a casa traduzia-as à minha familia. Aí comecei a
dar-me conta de que algo se perdia na tradução."
E foi aí que
começou a torcer a linguagem, digo-lhe, tentando tirar nabos da púcara.
Sorri maliciosamente, uma vez mais. É famoso por não revelar muito nas
entrevistas, ainda que me confesse que gostou muito de Cem Anos de
Solidão, “é um livro fabuloso”, diz. E aceita a influência de Luandinho
Vieira, "mas só na maneira de tratar a linguagem” esclarece. E não lhe
arranco mais influências.
Mas voltamos ao que nos interessa, a poesia
que impregna todo o seu livro. Digo-lhe que não concordo com Francisco
Noa (com quem falei e que é uma pessoa encantadora) quando diz que "a
água tem, na sua obra, uma dimensão antropofágica", pelo contrário,
parece-me um elemento optimista, fértil, símbolo do poder da imaginação
ou do inconsciente...Vendo o seu sorriso, prevejo que vai desvalorizar
essa importância, mas reconhece que "a água, e mais precisamente a
chuva, é um elemento de mudança e simultaneamente de regeneração nas
culturas tradicionais”. Das palavras que se seguem não me lembro bem
porque parece falar mais com os olhos da cor do mar, sorridentes. Mas,
quando o sorriso contagia os lábios, percebo que tenho de dizer qualquer
coisa.
Pergunto-lhe a primeira coisa que me vem à cabeça. "É
biólogo, não é? Porque eu sou médico", no mesmo momento envergonho-me um
pouco da confiança e da infantilidade da minha pergunta, mas como já
estou vermelho por causa do sol, ele não repara e responde-me "é mais
uma paixão do que uma profissão. Gosto porque conta uma história, a dos
seres vivos, o que para mim combina com a poesia e com a literatura”.
Como não digo nada, continua, "eu também queria ser médico, psiquiatra,
mas como fui militante da Frelimo, na luta pela independência de
Moçambique, tive de deixar o curso e, quando pude voltar a estudar, ao
ver a minha mulher, que também é médica, dei-me conta de que não teria
tempo livre de remorsos para a literatura, por isso estudei biologia."
Mas antes disso foi jornalista, digo, regressando activamente à
conversa.
"Infelizmente o partido fez-me director de um jornal. Gostei
muito do jornalismo mas, sendo um jornal do governo, comecei a dar-me
conta da diferença entre a teoria e a prática. Por isso comecei a
afastar-me do jornal e, mais tarde, do partido”. Insisto nesse tema. "É
que, na chamada ‘guerra civil’, houve uma componente de religião muito
forte, porque a Frelimo tentou afastar as crenças tradicionais
qualificando-as como “superstições”. Só assim se explica a enorme
componente emocional, o nível de crueza que a guerra teve." E,
pergunto-lhe, no discurso final do livro, quando fala do perigo de ser
dirigido por outros, refere-se ao controlo que a África do Sul tinha
sobre a Renamo? "Não, era uma ideia mais geral" responde-me,
propositadamente sucinto. E agora que já morreu essa besta, como dizia o discurso, já não há o perigo de uma guerra
civil em Moçambique? "Não, acho que não" responde com segurança
moderada, "mas a besta não morre, fica mais pequena, domestica-se. É
algo desagradável que os seres humanos têm e que as guerras nos mostram.
As pessoas amáveis que tem encontrado na sua viagem são as mesmas que
atingiram o nível de selvajaria que vimos na guerra ".
As pessoas
continuam a chamá-lo da porta e, ainda que continue a dedicar-me o seu
tempo, percebo que tenho de acabar. Assim, dou o tudo por tudo: E agora,
continua a acreditar no poder da literatura, da imaginação, para
tornar o mundo melhor? Já tínhamos falado que, quando era jovem, era
mais ingénuo, acreditava que as coisas podiam mudar rapidamente numa só
geração, e que agora pensava que as mudanças sociais tinham um outro
tempo, mas que, por outro lado, ainda lhe custava a acreditar que os
acordos de paz tivessem sido alcançados no tempo de mediou entre a
entrega do seu livro acabado, o seu grito de esperança, e a publicação
do livro. Tanta morte e tanta esperança. Naquele momento observava o seu
olhar límpido e sorridente, e estava ansioso por ouvir a sua resposta.
-Sim - responde, cortante. As palavras seguintes diluem-se como em
Terra Sonâmbula, vão-se transformando em ar, em poesia e novamente em
algo físico, desta vez um livro, um presente para mim.
-Feliz
aniversário – diz-me. E assim foi ;-)